Francisco Piedade

Sou um náufrago do barco do destino: Nadei, nadei, nadei à deriva e aqui vim parar.

Textos

NO TEMPO DAS CARAMBOLAS
Eu tinha oito, ou nove anos e estava ainda em formação. Fase em que as experiências são registradas e muitos episódios ficarão na memória para sempre.
E nessa serena manhã de domingo, absorto e meditabundo, ponguei no bonde das lembranças e fui parar em um desses episódios.
O ano é 1965, quiçá, 1966. O local é um vilarejo conhecido como Enseada, localizado às margens do rio Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, onde cresci.

Tia Miúda Fôen era uma mulher de estatura baixa e falava fanhosamente, daí, a alcunha preconceituosa, contrastando com seus lindos olhos verdes, rosto de belos traços, cabelos negros e lisos, que os mantinham sempre presos, porém, possuía um corpo delgado, envolto invariavelmente em vestidos longos e de mangas compridas.
Tia Miúda falava muito pouco, por motivos óbvios. Jamais se casara e, vivia solitariamente em uma casa grande e cheia de quartos, que herdara de seu pai. Era até onde eu sabia.

Era querida na comunidade, embora fosse motivo de chacota por parte da molecada e por alguns adultos insensíveis.
Mas eu jamais ri dela ou de quando ela falava. Até  reprimia os amigos que o fazia.
Talvez em virtude disso é que ela gostava de mim. Muito reservada e complexada, eu era o único garoto com o qual ela se relacionava. Gostava de minhas mãos. Achava-as graciosas e macias. Passava minutos olhando e alisando suas palmas. Será que ela era uma espécie de cigana e olhava meu futuro?

Ela não era minha tia de verdade, mas eu lhe queria tanto bem que a chamava assim e a adotei.
Ela por sua vez tão bem me queria  que me fez seu sobrinho, filho, confidente e único amigo.

Eu estudava pela manhã e quase todas as tardes eu ia à sua casa e lá ficava até o entardecer. Um dia minha mãe bradou:
- Não sei o que você tanto faz na casa de Miúda Fôen. Olhe lá, hein!

Eu gostava da casa dela; Gostava de estar em sua companhia. Ela parecia me compreender. Eu lhe contava meus segredos, falava da escola, dos amigos, dos problemas em casa... Ela sempre me ouvia e me aconselhava.
Lembro-me de uma vez em que lhe falei de minha intenção de matar minha avó porque ela havia me batido.
Então ela sorriu, pegou minhas mãos, olhou dentro de meus olhos e suavemente me falou:
- Olhe, meu querido, sei que você é forte, poderoso e pode matar quem você quiser. Mas você também é nobre, generoso, de bom coração e jamais matará ninguém, muito menos sua avó. Ela ama você e fez aquilo para o seu próprio bem.
Assim era tia Miúda.
Gostava muito também de seu quintal. Haviam muitos pés de carambolas. Não entendia o porquê de tantas caramboleiras. Viviam sempre carregadas. O chão repleto de carambolas maduras. Só os porcos as comiam.

Dentro de casa as carambolas estavam por toda a parte: Nas fruteiras, nos vasilhames da cozinha, na cristaleira... Ela fazia doce de carambola todos os dias, depois, jogava fora porque estragava.
Então eu pensava: Será que as carambolas eram as companheiras dela enquanto eu não estava lá?
Será que os doces que ela fazia era para adoçar sua vida vazia e amarga?
Tia Miúda devia ter algum segredo, e, provavelmente, em algum momento me contou.
Eu é que não devo ter entendido.



Francisco Piedade
Enviado por Francisco Piedade em 11/03/2012
Alterado em 24/03/2017


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