Francisco Piedade

Sou um náufrago do barco do destino: Nadei, nadei, nadei à deriva e aqui vim parar.

Textos

A IDA DE QUEM NÃO ESTAVA
É, moço. Eu ainda penso muito nela, penso, sim. Todo dia a saudade dela vem me aporrinhar. Ela é que nem o sol, nunca farta.
Aquilo é que era muié. Não me aperriava com nada. Cuidava da casa, das galinha, dos porco e ainda me ajudava na roça. Fazia uma buchada de lamber os prato e os beiço. Na cama, moço, fico inté acabrunhado de falar. Ela fazia osadia de matar o cabra. Não sou chegado a falar da intimidade do quarto, não sou mesmo, mas teve uma noite que nóis  tava tão assanhado, que arrebentemo os pé da cama. Tem vez que eu inté choro, choro, sim.

Me alembro como se fosse agora. Quando vi ela caminhando na minha direção com um caminhar diferente das outra. Tinha os cabelo preto e amarrado parecendo o rabo de cavalo. Carregava em riba da cabeça uma trouxa, mas não segurava com as mão. Não sei como aquela trouxa não caia.

Era domingo e eu tava na janela preparando um cigarro e apreciando os movimento.Ela me deu boa tarde e perguntou se eu sabia aonde tinha uma casa largada pro mode ela passá a noite. Eu falei que tinha uma na rua de cima, a casa do finado Fidélis. Adispois que ele morreu, a casa ficou entregue a Deus. Mas tava de porta e janela arrebentada e fedia que nem chiqueiro. Os muleque fazia as necessidade lá dentro. Ela deu risada do sucedido. Aí eu fiquei com a pulga atrás da orelha. Achei que ela tinha juízo fraco. Mas mesmo assim sem me assuntar, falei que se ela se agradasse, podia passá a noite na minha casa. A casa era de pobre, sim, senhor, mas onde comia um, comia dois. Ela deu risada de novo e disse que Deus ia me pagá.

Ela entrou, arriou a trouxa e pusemo a prosear. Me disse o nome dela e de onde tava vindo. Falou que largou do marido porque ele alevantou a mão pra ela. Aí eu fiquei raivoso. Que marca de Home é esse que bate numa muié? Deve de ter parte com o cão. Muié num foi feita pra apanhar, não senhor, ela foi feita pra ser companheira e acarinhada, isso sim.
Fiquemo inté tarde proseando.Naquela noite ela dormiu na esteira no chão da sala. Quando alevantei, ela já tava de pé e cantando. Cantava e os passarinho respondia. O café tava pronto e a macaxeira cozinhada. Êta muié ligeira danada, sô.Fiquei todo saliente
Fui trabaiá mas ela não saia da cachola. Até que avexado, vortei mais cedo pra casa. Quando cheguei ela tava toda formosa. A casa varrida e toda arrumada.Inté a imagem de Santo Antonio tava limpa. Adispois daquele dia, ela passou a dormir comigo.

Minha vida mudou, moço, mudou, sim. Trabaiava com mais gôsto, vortei a dá risada, que antes eu vivia infezado. Cortava o cabelo, as unha, raspava a barba e inté engordei mais.Andavam falando umas coisa, mas eu não dava assunto. Inté meu cumpade disse que eu tinha amalucado por punhar uma muié dentro de casa sem sabê quem é. Disse que era coisa feita. Confesso que de primeiro eu fiquei cismado,mas ela amoleceu meu coração e eu não queria saber de nada e não dava ligança pra ninguém.

Foi muito bom, moço, ficar com ela, foi sim. Fiquemo quatro ano junto. Nóis era um por dento do outro. Inté que um dia,ao vortar da roça,ela não tava em casa. Não tava no terreiro e nem na rua. Percurei por todo o canto e nada. A terra se abriu e ela se converteu. Ela pegou a trouxa e foi embora. Ninguém sabe, ninguém viu.

Hoje tô velho, cabelo grande, unha sem cortá, barba sem raspá e nem dou mais risada.
Fico na janela olhando os movimento e esperando que um dia ela apareça com aquele caminhar diferente e a trouxa na cabeça.
Tem vez que eu penso que ela deve de tá fazendo a alegria de outro Home em alguma banda, assim como fez comigo.
Adispois eu penso que ela nunca teve aqui. Que tudo foi coisa de meus pensamento.
Mas tem vez, moço, que eu acredito que ela foi um sonho bom que tive e que vou me alembrá pra sempre, vou, sim senhor!

Francisco Piedade
Enviado por Francisco Piedade em 01/05/2014


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